O papel do psicólogo no Ensino Superior: Entrevista com Júlia Murta

Júlia Murta lidera o Gabinete de Apoio Psicológico e Acompanhamento Vocacional da NOVA FCT, onde trabalha desde 2005. Ao longo dos anos, tornou-se uma peça-chave na comunidade académica, trazendo consigo uma vasta experiência em Psicologia Clínica e da Saúde, bem como em Psicologia Educacional. 

Com uma Especialidade Avançada em Psicoterapia, obtida entre 2007 e 2011 na Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica, da qual é também membro fundador, tem-se dedicado a aprofundar e aplicar as melhores práticas na área da psicoterapia. Em 2023, liderou a candidatura da NOVA FCT ao Programa de Promoção da Saúde Mental no Ensino Superior (PPSMES), e atualmente faz parte da Comissão Executiva e da Comissão de Gestão deste programa, cujo objetivo é reforçar o apoio à saúde mental na comunidade académica.

Paralelamente, Júlia Murta é ativa na RESAPES (Rede de Serviços de Apoio Psicológico no Ensino Superior), contribuindo para a melhoria dos serviços de apoio psicológico nas instituições de ensino superior em Portugal. Recentemente, tornou-se Membro Candidato da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, consolidando a sua posição como uma profissional respeitada e comprometida com a promoção da saúde mental.

Nesta entrevista, abordamos a sua trajetória, os desafios da psicologia no Ensino Superior e a importância de promover um ambiente académico saudável e inclusivo para todos.

 

Saber reconhecer os sinais de sobrecarga emocional é o primeiro passo para a decisão de procurar ajuda numa fase inicial? A que sinais/emoções os/as jovens devem estar atentos/as?

A sobrecarga, pode ser um sinal, sim. Se for emocional mais ainda. Reconhecê-lo pode ser fundamental para pedir ajuda, claro. 

Os estudantes universitários devem estar atentos quando começam a sentir que a vida parou, quando adiam muito o estudo, quando se sentem tristes por longos períodos de tempo, quando não conseguem sair desse estado ou, por exemplo, quando não conseguem parar. Parar ou não conseguir parar, podem ser as duas faces da mesma moeda. As duas faces do mal-estar psicológico e da necessidade de pedir ajuda. Outros sinais que podem aparecer são a falta de concentração, o isolamento. O isolamento é o que mais me preocupa. Depois há outros sinais como consumo prolongado de álcool ou drogas, a agressividade e impulsividade. É preocupante quando estes comportamentos ou sentimentos se prolongam no tempo, quando passam a ser a constante do dia a dia.

Por detrás desta correria diária, quais são as grandes problemáticas/distúrbios relatados pelos/as estudantes?

Os mais comuns são a depressão e a ansiedade. Há também casos de ideação suicida ou patologia grave, mas felizmente não são os mais comuns.  Diria que para além destes, as razões que levam um aluno a pedir ajuda variam consoante a fase do percurso académico. Nos primeiros anos da faculdade o mal-estar psicológico é desencadeado pelas questões da integração na vida académica ou pelas dúvidas vocacionais. Ao longo do trajeto, podem levantar-se questões mais existenciais, como por exemplo: O que vou fazer quando sair daqui? O que quero fazer? Qual é o meu projeto de vida? Ou as questões das relações amorosas. No final do percurso académico são reevocadas as questões da separação, deixar esta “casa”, ir para o mercado de trabalho, surgem as inseguranças face ao futuro.

Temos de ter em conta que, do ponto de vista do desenvolvimento, estes jovens estão numa fase em que estão a construir a autonomia e a “separar-se” de modelos de identificação estáveis para passarem a criar os seus. Todo este processo pode gerar angústia, criar instabilidade. Não é de admirar que a depressão e a ansiedade sejam frequentes, é um processo difícil, mas com grande potencial de desenvolvimento e expansão.

Diria que as problemáticas não são diferentes do que eram há anos, mas a sintomatologia é mais grave.

Da parte dos estudantes, há ainda estigma em procurar ajuda psicológica?

Penso que ainda há algum, mas muito menos do que havia há 20 anos. Quando cheguei à NOVA FCT havia alunos que davam voltas ao campus para não serem vistos a entrar no edifício. Hoje isso não acontece. Há alunos que se orgulham de dizer que têm consultas.

No geral, quando percebem que têm um papel ativo, participante no processo, desmistificam muito. Costumo dizer-lhes que é como uma investigação, estamos dois, numa espécie de laboratório a tentar compreender o que um traz, vamos vendo hipóteses, construindo uma compreensão. Claro que depois há aspetos de maior complexidade no processo.

Os alunos gostam de perceber, se não explicamos, sentem-se à deriva e, claro que é natural que não saibam e que queiram saber, é a vida emocional deles.

O meio académico é psicologicamente muito mais exigente que há 20 anos?

Não sei se será isso, o que me parece é que os recursos que os alunos têm hoje são muito diferentes e os recursos que não têm também.

O tempo está muito acelerado para o tempo que precisam para crescer, talvez a tecnologia nos tenha acelerado ou o trabalho ou a economia.

Do ponto de vista do desenvolvimento humano somos seres lentos, repare, há aspetos da nossa vida que ainda hoje se regem por princípios de há 2000 anos, a moral por exemplo. Em contraponto somos muito rápidos a mudar o mundo, a criar.

Penso que a maior parte das coisas que valem a pena demoram, um curso demora, uma amizade demora, criar um filho demora, construir uma vida demora, pensar, aprender demora. Já imaginou apaixonar-se à pressa, namorar à pressa, passear à pressa, estudar à pressa?

Por outro lado, há as redes sociais que apresentam vidas perfeitas, imagens e corpos perfeitos e dão receitas para tudo, muitas vezes deixam os jovens a sentir-se incapazes, inaptos porque não conseguem estar bem, mesmo quando fizeram tudo o que lhes foi proposto.

Os jovens precisam de espaços de subjetivação, para se irem desenvolvendo a partir deles próprios, enquanto seres individuais e separados. Isto só é possível em espaços onde vivem experiências de relação com os colegas, consigo próprios, com os professores, com o saber… tempos que promovam a construção de um Acervo de Humanidade Próprio (Leopold Nosek, 2022) que permita lidar com a adversidade e a imprevisibilidade do mundo.

Recentemente, com a semana da saúde mental, os alunos participaram em várias iniciativas. Houve uma atividade em que escolheram poemas para distribuirmos pela faculdade, interagiram. Depois, no encontro dos alunos com a Aletria (Biblioteca Itinerante que foi nossa parceira) descobrimos que temos alunos que escrevem maravilhosamente e que tiveram a oportunidade de apresentar os seus trabalhos. É fundamental criar estes espaços.

Penso que a pressão académica de hoje é de outra ordem. É tudo muito rápido, mas não me parece que seja mais exigente. Antigamente liam um livro duas ou três vezes, apropriavam-se, que é um elemento fundamental nesta idade. Agora leem um a pensar no seguinte. Do ponto de vista psicológico trás desafios novos – um esforço maior para parar, pensar, reorganizar, recentrar, delimitar. Contudo, os alunos têm outros recursos, há mais núcleos, o aluno tem maior participação na comunidade académica e até nos órgãos da Faculdade.

A equipa atende em média quantos alunos por ano? Esse número tem vindo a aumentar?

O ano passado tivemos cerca de 270 pedidos, mas tivemos um ano, o de 2021/2022 em que ultrapassamos os 300. Numa altura em que eramos apenas duas psicólogas no Gabinete. Foi muito difícil!

De que forma a pandemia e o estudo online afetaram, ou não, os relacionamentos interpessoais?

O Almada Negreiros dizia, “o acaso encontra-nos como estamose foi isso que aconteceu.  Para quem trabalhava com jovens/adultos não foi surpresa a vulnerabilidade psicológica que se observou, era previsível que, numa situação extrema, pudessem surgir grandes dificuldades.  Afetaram os relacionamentos interpessoais e intrapessoais também, as pessoas confrontaram-se com elas próprias sem as redes de suporte habituais. O isolamento aumentou muito.

Todas as mudanças e indefinições foram desorganizadoras, o tempo de confinamento foi excessivo. Para um jovem que está a construir e a consolidar a sua identidade este período foi de uma certa deriva. Os estudantes perderam vários espaços de relação e nesta idade é fundamental a ligação aos amigos, aos professores, ao espaço da faculdade.

Ainda hoje sentimos as consequências deste período nomeadamente nas questões de socialização e de autonomia.

Os estudantes do ensino superior vão passar a ter acesso a um apoio para consultas de psicologia, mediante determinados requisitos. São 100 mil cheques-psicólogo e cada estudante pode usufruir até 12 consultas com um psicólogo. Qual a sua opinião sobre esta medida?

Estou ambivalente em relação à medida.  É uma medida que não pretende substituir os serviços de apoio psicológico, a Ordem dos Psicólogos Portugueses teve o cuidado de o afirmar. Por outro lado, preferia saber quem são os psicólogos que vão atender os alunos. Têm especialidade avançada? Têm supervisão do seu trabalho? Que formação têm para além do curso? Na minha opinião, ter o Mestrado em Psicologia Clínica não é suficiente para atender alunos universitários. É fundamental fazer supervisão e ter formação regular.

Por outro lado, para 12 sessões resultarem, os psicólogos têm de ter uma boa experiência com esta população. Mas não podemos ser ingénuos, 12 sessões é pouco para o tipo de questões e problemas que os estudantes apresentam hoje.

Relativamente aos serviços de psicologia, a minha esperança era que esta medida pudesse aumentar a capacidade de resposta, mas tenho muitas dúvidas. O procedimento é mais moroso do que num serviço, para além de que os Gabinetes de Psicologia estão fisicamente no campus e este aspeto faz muita diferença.

Em casos mais complexos, ou que até nem se enquadrem nos pré-requisitos para acesso a esta medida (sintomas com duração superior a um ano e seis meses; tenham problemas como o consumo problemático de substâncias e comportamentos aditivos; tenham tido um diagnóstico de perturbação psicótica ou bipolar ou diagnóstico de perturbação da personalidade; apresentem tentativas de suicídio prévias ou risco de suicídio), como podem os estudantes usufruir de apoio psicológico?

Esse ponto é curioso porque na realidade caracteriza muitos dos pedidos de ajuda que nos chegam. Talvez possam dar mais resposta a alunos do 1.º ano.

Os estudantes que não podem usufruir desta medida poderão continuar a fazer o pedido junto dos serviços de apoio psicológico da universidade e nos serviços de saúde públicos.

Que projetos integram a sua lista de tarefas?

Tenho vários. Estou a acabar de  redigir um trabalho que desenvolvi aqui na NOVA FCT. Chama-se “As vozes de Eco, 2”. O ano passado fiz o primeiro.  É sobre situações de atendimentos psicológico grave e todo o processo envolvido, toca em aspectos importantes das funções de um serviço de psicologia numa universidade.

A Implementação do Programa Promoção da Saúde Mental no Ensino Superior. (PPSMES), BANDUA, tem uma lista interminável de to do's que partilho com as minhas colegas.

Estou a iniciar o grupo A Arte que nos vê, que alia a vivencia e experiência de contactar com um objeto artístico e a compreensão do que é o ser humano.

Estou a organizar a Supervisão do estágio de psicologia – É importante podermos cumprir esta função na faculdade, principalmente agora que o ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada) vai fazer parte da NOVA. A Professora Graça Figueiredo Dias iniciou esta parceria há mais de 25 anos.

E vou reiniciar as aulas de inglês, com o número de estudantes estrangeiros a aumentar, é fundamental. Houve um dia em que me faltaram algumas palavras numa consulta e no fim eu disse ao aluno que ia melhorar o inglês, e ele respondeu: não tinha reparado, acho que nos entendemos tão bem. A língua emocional é universal, não é? Como dizia o Kiarostami - Pain is pain everywhere. Entre o português, o inglês e a língua do aluno havia qualquer coisa que se sobrepunha, havia um entendimento emocional, que é o que interessa, não é?

Outubro 2024