Entrevista| Portugal ainda não valoriza o investimento na ciência

João Carlos Lima e Graça Martinho coordenam os trabalhos do Conselho de Unidades de Investigação.

Foto: João Lima/NOVA FCT

No mês em que celebramos o Dia Nacional da Cultura Científica, quisemos conhecer o estado atual da Ciência em Portugal e em particular a que se produz na NOVA FCT. Em entrevista com Graça Martinho, Coordenadora do Conselho de Unidades de Investigação, e João Lima, Vice-Coordenador, percebemos que sensibilizar a sociedade para o investimento na Ciência continua a ser fundamental. 

 

A União Europeia estipulou uma meta de investir 3% do PIB em investigação, mas o valor atual é de apenas 2,27%. Em Portugal, a situação parece ainda mais crítica. Quais consideram ser os principais entraves para que o nosso país atinja uma maior percentagem de investimento em Ciência? 

Essencialmente o nosso país, os nossos cidadãos, as nossas empresas, os nossos políticos, não têm ainda uma perceção clara do valor acrescentado de investir na Ciência. Esta falta de visão leva a que a Ciência em Portugal esteja altamente subfinanciada. Acabamos por investir porque a Europa investe, não porque o país tem a perceção que seja um investimento rentável. A investigação necessita de investimentos a longo prazo e sustentáveis, os seus resultados só têm efeito normalmente a longo prazo, pelo que não apostar num maior investimento em investigação agora significa perder a competitividade de Portugal a médio e longo prazo.  

A longo prazo, como imaginam que o sistema de investigação em Portugal pode evoluir para se tornar mais sustentável e menos dependente das limitações do orçamento nacional? Existe espaço para novas parcerias ou alternativas de financiamento? 

O financiamento sustentável tem de se apoiar em três eixos. Um 1.º eixo fundamental é a existência de um financiamento estrutural constante e previsível para o sistema científico, sob a forma de contratação de recursos humanos e infraestruturas e equipamentos modernos. Esta parte do investimento deve ser feita pelo Estado e estar inscrito no orçamento de Estado de forma clara e é atualmente inexistente. O modelo de financiamento das universidades portuguesas é feito por estudantes do 1.º ciclo, e está limitado a um contrato de regime que mantém o sistema subfinanciado porque o número de vagas é, e tem sido, imutável há mais de uma década. Neste momento, o sistema está gravemente subfinanciado. Apesar de em 2023 o modelo de financiamento ter sido corrigido para a inclusão de estudantes de outros ciclos, deixa de fora a investigação científica, a quantidade e qualidade das contribuições para o desenvolvimento científico. 

Por causa desse subfinanciamento, toda a produção científica e inovação tecnológica é feita através de investimento captado de forma competitiva pelos docentes e investigadores. Este financiamento é irregular e imprevisível, o que torna o sistema insustentável, cria uma precariedade laboral e limita a autonomia dos recursos humanos de investigação e torna o parque científico e tecnológico (equipamentos e edifícios) obsoleto e degradado. Este financiamento, captado em concursos nacionais e europeus, deveria ser o 2.º eixo de investimento na Ciência, mas de momento é o único com expressão significativa. 

Finalmente o 3.º eixo de financiamento importante é o investimento em inovação feito pelas próprias empresas do tecido produtivo português, que ainda é muito baixo e tem de crescer. Para isso, é preciso que a mudança cultural referida na primeira questão ocorra, é necessário que a Ciência seja percecionada pela sociedade como um investimento rentável. A valorização do conhecimento e inovação tecnológica produzida no sistema científico é onde se faz a diferença nas sociedades mais desenvolvidas e onde existe maior margem de crescimento do financiamento do sistema científico nacional. Este 3.º eixo tem muito pouca expressão em Portugal, existindo ainda muito espaço para a conceção de programas de estímulo ao investimento em inovação e ao estabelecimento de parcerias para as empresas investirem em investigação desenvolvida em universidades e centros de investigação. Esta via de financiamento poderá contribuir para diminuir substancialmente a dependência do financiamento do sistema científico nacional do 1.º e 2.º eixos referidos anteriormente. 

Como funciona o processo de avaliação do sistema científico em Portugal? Quais são os principais critérios ou elementos valorizados na avaliação de um centro de investigação? 

Precisamente porque o sistema científico depende exclusivamente de financiamento competitivo existem um grande número de tipologias de concursos o que torna o sistema burocrático pesado para as instituições responsáveis pelos concursos: a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT.IP) e a Agência Nacional de Inovação.  

Existem concursos para projetos de desenvolvimento científico, para projetos de inovação tecnológica, para bolsas de várias tipologias, para contratos temporários para investigadores, para unidades de investigação, para laboratórios associados, entre outros. Os sistemas de avaliação também variam nos objetivos do concurso, na constituição dos painéis de avaliação, no número de avaliadores nas regras de submissão, etc.  

Quase todos os sistemas de avaliação individual (projetos, contratos, bolsas, etc.) se baseiam na existência de um painel de especialistas que usam critérios objetivos para a avaliação das candidaturas e que, em geral, avaliam a quantidade e qualidade da produção científica, coerência e adequação do projeto proposto, e o seu impacto na comunidade científica e na sociedade. O painel de avaliação produz uma lista ordenada que de seguida é submetida a uma linha de corte de acordo com o financiamento disponível.  

No caso das unidades de investigação, avalia-se ainda a organização interna, a existência de um plano estratégico, a captação e fixação de recursos humanos qualificados. Em vez de ser utilizada uma linha de corte, o sistema é mais progressivo, porque a descontinuidade de financiamento de uma unidade de investigação tem um impacto acrescido. Neste caso, as alterações na classificação tendem a refletir-se quantitativamente no financiamento concedido.  

Com o fim do ciclo atual de avaliações dos centros, existe a possibilidade de mudanças nas classificações atuais? Vamos ter mais centros com classificação "excelente"? 

Vamos certamente ter mudanças nas classificações atuais. Num sistema maduro o número de “excelentes” deve manter-se porque corresponde a uma determinada percentagem dos avaliados que estão no topo. O que muda são os detentores da classificação “excelente”, alguns perdem-na e outros ganham-na; há sempre mudanças num sistema competitivo de financiamento. Essa é a razão por que o sistema científico não pode depender exclusivamente de financiamento captado competitivamente, porque torna impossível fazer planos estratégicos de médio e longo prazo, alimenta a precariedade laboral e leva os investigadores a fixarem-se em metas de curto prazo. 

Na vossa opinião, quais são as principais diferenças entre ser investigador e docente atualmente em comparação com a realidade de há 30 ou 40 anos? Que fatores contribuíram para essas mudanças? 

Há 40 anos praticamente não havia investigação científica em Portugal ou era praticada residualmente por docentes que utilizavam as suas férias e sabáticas para fazer os seus estudos no estrangeiro onde existiam os equipamentos e infraestruturas. A infraestrutura científica portuguesa foi criada pelo Prof. Mariano Gago e desde aí tem-se consolidado e internacionalizado.  

Hoje todas as instituições do sistema científico nacional são submetidas a avaliações exigentes por painéis internacionais e o grau de exigência que é colocado aos docentes universitários e investigadores do sistema científico nacional é muito superior ao que era há 30 anos, quer do ponto de vista da quantidade e qualidade da produção científica, quer do ponto de vista do impacto societal dessa produção.  

O financiamento de infraestruturas e recursos humanos através da FCT.IP foi fundamental para criar um sistema de investigação científico de qualidade internacional em Portugal. A partir da crise económico-financeira mundial de 2008, houve uma inversão do processo levando ao subfinanciamento do sistema, que até hoje não foi possível ultrapassar. O orçamento da FCT.IP não mais acompanhou o crescimento do sistema científico nacional, tornou-se irregular, com grandes hiatos sem concursos para financiamento de projetos científicos, principalmente por falta de dotação orçamental. Felizmente a capacidade das instituições na captação de verbas em concursos de projetos internacionais aumentou, permitindo alguma mitigação da condição de subfinanciamento. 

No futuro poderemos assistir a uma contração do sistema científico nacional se não existir uma mudança de perceção das necessidades de investimento nesta área.  

Dado que os problemas atuais são cada vez mais complexos e globais, qual é o papel da investigação e das universidades na procura de soluções e envolvimento com a sociedade? 

Os problemas globais socioambientais que afetam as sociedades, como a poluição do ar, as mudanças climáticas, a poluição da água e dos solos, a perda da biodiversidade, a pobreza extrema, as matérias-primas críticas e a geração de resíduos, são por natureza problemas complexos, e normalmente essa complexidade é impercetível para a sociedade em geral, e este é um problema que temos de ultrapassar e aprender a comunicar melhor mas sem demagogia. Por exemplo, garantir de forma sustentável o fornecimento, em quantidade e qualidade, de alimentos, água e energia, são eixos fundamentais sem os quais não se conseguem assegurar as melhores condições de vida e de saúde das populações. Qualquer um destes eixos requer abordagens integradas, multi/inter/transdisciplinares, com o contributo de várias disciplinas científicas, e coloca desafios cujas soluções requerem a colaboração de vários campos do conhecimento e de outros atores da sociedade. Neste processo, a identificação dos problemas e necessidades tem como atores mais relevantes as comunidades e as empresas, e é no diálogo destas com os atores do sistema científico e de desenvolvimento tecnológico que se podem encontrar as soluções mais adequadas e sustentáveis e, acima tudo, criar valor a partir da investigação científica.  

Quais os temas que deveriam ser debatidos mais amplamente pela comunidade da NOVA FCT para fortalecer a investigação e o papel do investigador? 

A NOVA FCT tem feito um esforço para criar e reforçar as suas infraestruturas de apoio à investigação, reforçando os seus gabinetes de apoio a candidaturas e gestão de projetos, propriedade intelectual e transferência de tecnologia. Apesar das condições de subfinanciamento crónico tem criado condições para a disponibilização de verbas aos departamentos e unidades de investigação, aproveitado muito bem as oportunidades para a redução da precariedade na carreira de investigação. Um dos assuntos mais importante a debater é o de encontrar estratégias para o crescimento sustentável da investigação científica. A reputação internacional das universidades na área de Ciência e tecnologia está fortemente ligada à sua reputação científica, ao reconhecimento internacional dos seus investigadores e ao impacto global das suas descobertas científicas e desenvolvimentos tecnológicos. É fundamental encontrar estratégias virtuosas para a captação e fixação de investigadores altamente qualificados e para a criação de condições de apoio ao desempenho desses mesmos investigadores na produção de Ciência de elevada qualidade e na captação de fundos sob a forma de contratos de investigação ou de transferência de tecnologia.   

Que oportunidades o Conselho de Unidades de I&D (CUID) identifica para promover a cooperação entre as diferentes Unidades de I&D e fomentar abordagens interdisciplinares na NOVA FCT? 

O CUID foi determinante na estratégia de captação, avaliação e fixação de recursos humanos de investigação altamente qualificados da NOVA FCT. A contratação de recursos humanos partilhados entre Unidades de Investigação (UI&D) é uma estratégia já usada pelo CUID para potenciar a colaboração entre as UI&D. A colaboração entre UI&D na NOVA FCT tem crescido e pode ainda ser potenciada através da criação de mecanismos de estímulo que levem ao aumento da cooperação, quer ao nível da formação avançada (e.g. orientações partilhadas de estudantes de 2.º e 3.º ciclo), quer ao nível da investigação científica.  

 

  

 

Novembro 2024